segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Le Divan de Staline (2016)

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O Divã de Estaline de Fanny Ardant é uma longa-metragem luso-francesa recentemente estreada e que passou em antestreia mundial na passada edição do LEFFEST - Lisbon & Estoril Film Festival em Novembro último.
Na União Soviética da década de 50, Danilov (Paul Hamy) é o artista encarregue de elaborar o monumento a Estaline (Gérard Depardieu) aquando do seu breve período de recuperação física numa propriedade campestre. Aí, sob intensa investigação do KGB, Danilov deixa-se encantar pela misteriosa Lidia (Emmanuelle Seigner), símbolo do desejo sentimental e amoroso de um Estaline ensombrado pelos mistérios da sua mente.
Tendo como ponto de partida a obra de Jean-Daniel Baltassar, Fanny Ardant escreve o argumento deste Le Divan de Staline naquela que é uma obra onde a figura do ditador soviético se cruza com os seus próprios demónios e fantasmas do passado e a imagem de um homem controlador, assustador e acima de tudo com uma assumida vontade de continuar a ser o temido líder de uma nação saída da guerra e que a ele deve a ideia da sua libertação. Tudo está, desde o primeiro instante, ligado a uma imagem que mescla a ordem com a submissão. Aliás, desde os momentos em que o espectador observa o interior daquela mansão imensa perdida no meio da floresta - quão familiares são aquelas imagens - que se percebe que é a opressão e a consequente submissão que dominam todo o ambiente. Nada pode estar fora do seu lugar e ninguém é tão independente que possa (por si) tomar rédeas de um espaço que está sob o mando de um homem que, mesmo não estando presente, se faz sentir como dominador de todo um espaço. Por outras palavras, Estaline é aqui um deus omnipresente... ainda que esteja ainda por chegar ou ausente de alguns dos espaços em que se desenrola a acção desta longa-metragem, o espectador percebe e sente que a sua presença é uma constante. Impiedoso e eventualmente mortal - tal como um deus com os seus caprichos - Estaline é a figura principal desta história... mesmo quando os acontecimentos não decorrem com a sua figura in loco. Naquela mansão todos o esperam... todos - em fila - aguardam a sua aprovação, o seu génio tempestivo. Todos tentam uma diversão encenada para a agradar o líder que temem. Todos vivem (ou melhor), todos existem na medida do contentamento de um homem que, mesmo debilitado, exerce sobre eles um fascínio que já ultrapassou a sua própria fronteira... Estaline é idolatrado e temido... em doses nem sempre iguais... e tudo à sua volta depende e existe de acordo com um humor incerto e instável.
A dar corpo a este homem temos um Gérard Depardieu que, com o génio próprio, consegue incorporar a imagem deste líder/ditador temido e temível. Depardieu encarna a personagem e faz oscilar o seu humor e esta longa-metragem atinge os seus picos na exacta proporção em que a sua personagem se exalta para lá do actor. Depardieu é "Estaline" e impõe toda uma presença numa sala que tanto pode estar ocupada com uma outra personagem ou com dezenas delas não conseguindo, nem por um instante, partilhar espaço e a energia que se fazem sentir. Num mundo de faz de conta - não só no set mas também no espaço sócio-político do ditador -, todos encarnam personagens que se adequam ao esperado (pensam!) pelo ditador. Ninguém pode ser fraco, menos preparado ou apanhado de surpresa. As respostas têm de estar prontas e as atitudes respectivamente delineadas para que a "máquina" soviética (estaliniana) funcione sem falhas. Depardieu cria o seu "Estaline" como um homem incerto... bon vivant mas ilusoriamente feliz. Confidente e confiante mas desconfiado de todos os que o rodeiam incluindo (especialmente) aqueles que lhe são mais próximos. Depardieu faz jus ao velho mito do ditador soviético... para controlar há que depenar uma galinha e lançá-la às demais... todas saberão que o devem (não respeitar) temer.
A seu lado encontramos Emmanuelle Seigner como "Lidia", a sua amante, amiga, confidente e psicóloga de serviço - o divã não deixa enganar - que o escuta, ama - não sabemos em que medida é mesmo uma paixão ou uma (in)voluntária submissão para agradar ao líder - e "trata" das suas fobias originadas por um conjunto de sonhos para os quais espera a devida resposta freudiana e que resolve(m) através de jogos mais ou menos explícitos ou os inuendos e as suposições deixam certezas - ao espectador - de que tudo está devidamente programada pelo líder temido. Conhecedora de todos os pequenos jogos de poder que "Estaline" prepara, será "Lidia" capaz de manter o ditador dominado - talvez controlado?! - dentro do seu próprio jogo.
Tudo é controlado, todos são observados e o respectivo passado é exaustivamente questionado. Não pode existir nenhuma carta - pessoa/personagem - fora de um baralho pertencente a um aparelho altamente recto - onde esta rectidão é apenas um instrumento de dominação e não de justiça -, e para estar presente no mesmo espaço do dito "pai de todos", todos precisam ser conhecidos, sem passados que levantem questões ou pontas soltas que os possam comprometer. "Danilov" (Paul Hamy), o artista escolhido para celebrar a vida e a obra de "Estaline" é um desses intervenientes. Para existir não pode ter nada pessoal. Ali não existe o individual mas sim um colectivo que o compromete à obra do líder. À visão do líder. às vontade desse líder. "Danilov" deixa de existir enquanto tal para ser um instrumento de trabalho ao serviço de um patrão que não aceita um não como resposta e enquanto trabalha são várias as ocasiões em que escuta os gritos de horror daqueles que ousaram proferir esse "não". E enquanto este "Danilov" parece criar uma empatia com "Lidia", "Estaline" oscila nos seus humores violentos e impacientes como que uma criança mimada que exige total atenção do seu rebanho.
Ainda que sempre de uma forma incerta, "Lidia" parece desenvolver uma atracção platónica por "Danilov", uma vez que este encarna o tal ideal de beleza ainda intocada pelas mãos do regime e, como tal, pura e não vilanizada. Para ela, "Danilov" é eventualmente o último dos artistas. O último dos homens bons num regime que já se esqueceu (se alguma vez sequer se lembrou) da justiça e da igualdade que tanto proclamava. Para sobreviver, o regime teve de silenciar os homens bons e "Danilov" é, de certa forma, o elemento novo e fresco que os faz recordar dessa pureza agora estranha e esquecida e, como tal, o factor que pode fazer tremer um regime. O amor - ou a cumplicidade - não podem existir e as suas provas têm de ser rapidamente eliminadas. Por sua vez, os sonhos de "Estaline" - menciona "Lidia" - são o fruto da solidão, da abdicação e da dedicação que teve para com a pátria-mãe. Sobre o abandono do seu "eu" em favor de um colectivo e é esta verdade - aos seus olhos - que então o faz temer a mulher que ama e de quem se sente cúmplice... Afinal, todos os impérios foram perdidos pelo amor do ditador para com a mulher que o fez sentir...
"No cinema o que importa são as imagens", profere "Estaline" ao assistir a uma obra ocidental proibida aos olhares da população em geral e é sob esta premissa que o espectador reflecte sobre a obra de Ardant... num misto de quadro/imagem em movimento, obtemos pequenas obras de arte enobrecidas com uma direcção de fotografia exímia pelas mãos de Renato Berta e Renaud Personnaz que transformam o ambiente tenebroso de um espaço onde todos os recantos e detalhes são controlados em pequenas manifestações artísticas de uma sobriedade sentida e o único elemento que reflecte a tal exasperada vontade de fuga prende-se com a saída voluntária - e única - de um cão do palacete/prisão controlado a todos os momentos como representação máxima de que apenas os mais anónimos - difíceis de encontrar neste sistema - conseguem escapar de uma máquina altamente instrumentalizada e onde todos - os que podem - conhecem todos - os que interessam.
Com um mise en scène que funde o género cinematográfico com o teatral onde tudo está devidamente posicionado ao milimetro, Fanny Ardant consegue mostrar um apurado sentido de realização e direcção de actores já sentido com Cendres et Sang (2009) - não fosse ela uma magnífica actriz que percebe e sente as necessidade de um actor -, retirando de Dépardieu uma das suas melhores interpretações dos últimos largos anos - ainda que a nível de caracterização corresponda mais a uma fase decadente do ditador soviético - como um homem e líder de carisma assumidamente negativo que denotava as suas quebras emocionais e laivos de paranóia. Com um argumento sólido enquanto relator das falhas emocionais de um homem que dominou um dos países mais fortes do mundo em diversos momentos críticos da História, Le Divan de Staline é, sobretudo, um filme de actores e de composição de personagens e, através delas, de relato de uns bastidores mais ou menos imaginados dessa mesma História frequentemente difusa e pouco esclarecedora a propósito dos seus principais intervenientes, não esquecendo toda uma composição técnica - guarda-roupa, direcção artística, caracterização e fotografia - de excelência e que em muito contribuem para toda a dinâmica de medo que lentamente se instala nos bastidores - e não nos corredores - de uma intensa e temida figura política.
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"Devant moi les volutes d'une brouillard épais et derrière moi une cage vide."
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7 / 10
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