sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Lion (2016)

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Lion - A Longa Estrada para Casa de Garth Davis é uma longa-metragem australiana presente na Selecção Oficial - Fora de Competição da décima edição do LEFFEST - Lisbon & Estoril Film Festival que decorre até ao próximo dia 13 em Lisboa e Estoril.
No seio de uma Índia profunda, o jovem Saroo (Sunny Pawar) segue o seu irmão Guddu (Abhishek Bharate) para todo o lado enquanto a mãe trabalha nas pedreiras. Uma noite quando Guddu se prepara para ir trabalhar, Saroo acompanha-o e espera-o numa movimentada plataforma de comboio. Exausto e sem sinais do irmão por perto, Saroo refugia-se num comboio que o leva para a metrópole Calcutá.
Perdido nas ruas da cidade e a milhares de quilómetros de casa, Saroo sobrevive-lhes ultrapassando todo um conjunto de obstáculos até ser levado para um orfanato e adoptado por John (David Wenham) e Sue Brierley (Nicole Kidman). Vinte e cinco anos depois e após o início de uma relação com Lucy (Rooney Mara), o despertar de uma identidade que não conhece torna-se não só um imperativo como uma necessidade que precisa ser colmatada. Necessidade essa que o levará a uma viagem pela memória, pelo confronto com o homem (Dev Patel) que agora é e a um regresso ao seu país de origem onde tentará encontrar a família que já não conhece.
Qualquer cinéfilo e espectador mais atento teria este filme em consideração sabendo que é, já há alguns meses, um dos mais falados para esta temporada de prémios prestes a iniciar. Se a ele juntarmos a presença de Nicole Kidman a uma história que se anuncia dramática, poucos de nós serão aqueles que não se deixam levar pelo ímpeto de ir assistir a este filme. Este que era o mais aguardado, por estas bandas, de toda esta edição do LEFFEST confirmou a sua força desde o instante em que o espectador é levado para as inimagináveis e complicadas vidas de um interior profundo de um quase país-continente, tão maravilhoso pelas suas belezas naturais como espantoso pelas vidas limite e precárias que, ainda que aqui ficcionadas, revelam um carácter comprometedor e assumidamente transtornante. Mas, por mais interessante que seja poder falar de um situação económica de um Estado como o é a Índia e que, no fundo, acaba por ser um factor inicial determinante para o desenrolar de todo um conjunto de momentos e situações, a dramática história de "Saroo" - inspirada em acontecimentos verídicos - capta a atenção do espectador desde aqueles instantes em que este se revela como uma criança não só adorável como claramente reveladora de um espírito maior do que a sua jovem idade.
Dividido em dois segmentos, o argumento de Luke Davies inspirado na obra A Long Way Home, de Saroo Brierley, inicia a sua aventura numa Índia profunda, rural e onde a miséria determina todo um estilo de vida de uma população que definha lentamente naquela que poderia ser facilmente considerada como uma vã esperança de sobreviver que nunca conseguirá ser alcançada. Deste interior rural à perdição nas ruas de uma metrópole que tem tanto de violenta como de assustadora para uma jovem criança, "Saroo" viu-se a braços com a mendicidade, com as perseguições policiais destinadas à "limpeza" das ruas de Calcutá e até mesmo a uma abordagem que lhe poderia ter transformado a vida - numa perspectiva bem negativa - quando é, de certa forma, quase recrutado para uma rede de prostituição infantil da qual, felizmente, se conseguiu libertar antes que a própria se iniciasse. A infância deste jovem - portadora de todos os elementos para se considerar realmente perdida - alcança uma inesperada reviravolta quando, já num orfanato da cidade, se depara com uma adopção por parte de alguém que está no outro lado do mundo. Fruto de uma ignorância que apenas a miséria pode conferir, "Saroo" desconhece a sua proveniência, não consegue explicar de onde vem ou - sem saber - o seu próprio nome que apenas em adulto descobre qual ser verdadeiramente mas, no entanto, as portas que lhe seriam abertas com esta adopção eram - à altura - inimagináveis mas fundamentais para (mais tarde) descobrir quem realmente é.
Tendo em conta estes pensamentos - soltos assumo - o espectador abraça o segundo momento desta longa-metragem australiana como a chegada deste jovem a um novo mundo onde existem todo um conjunto de objectos e momentos que se dão como adquiridos neste dito "mundo ocidental" como adquiridos mas que, para "Saroo" eram descobertas que lhe iriam conferir toda uma qualidade de vida, até então, impensável - não para ele mas sim para a mãe que deixara na sua Índia natal - e o transformariam pelas oportunidades agora proporcionadas. Desde uma simples (ou talvez não) confirmação de alimento na sua mesa, uma educação e a possibilidade de ser tudo aquilo que conseguir imaginar ou desejar, "Saroo" tem tudo ao seu alcance. Mas, no entanto, o ressurgimento de um sentimento de incerteza e a constante procura de uma casa que sente não ter, moldam a sua vida já em adulto, ao ponto de se distanciar da família que o acolheu - e no fundo aquela que esteve presente em todos os momentos determinantes da sua vida - e, ao mesmo tempo, sentir-se orfão de uma família que desconhece e tão pouco sabe se ainda existe. Esta incerteza que reside num misto de memórias que surgem aleatoriamente e uma crescente necessidade de se encontrar e perceber as suas raízes levam "Saroo" (Patel) a embarcar inicialmente numa viagem virtual por uma Índia desconhecida e, pela força de um improvável acaso, reconciliar-se com "Sue", uma mãe de quem se distanciara durante este processo e que compreende ter sido o seu destino - dele e dela -, este improvável encontro que os tornou mãe e filho... por laços não de sangue, mas de amor, e finalmente dar corpo à tal viagem física que lhe confirmaram as suas raízes, o seu espaço, a sua "casa" e (re)conhecer a sua família biológica.
Existem tantos e tantos elementos que, em Lion, são dignos de registo que irei apenas referir aqueles que penso serem mais óbvios deixando ao espectador o prazer de descobrir os demais. Em primeiro lugar, e este sem dúvida francamente óbvio, a clara condição social de um país gigante como o é a Índia que fomenta e aprofunda grandes clivagens sócio-económicas, distanciando toda uma população já de si separada por uma língua diferente em diversas regiões, e criando vários mundos e realidades dentro de um mesmo Estado que se desconhece. De seguida, e de certa forma como uma directa consequência da anterior, Lion estabelece e clarifica, ainda que de forma mais ou menos implícita, os graves problemas que circulam gerações, ao distanciar famílias e lançando na mendicidade milhares - milhões?! - de crianças nas ruas de grandes metrópoles ficando, por consequência, sujeitos a todo o tipo de perigos, explorações e violações que poderão - irão! - lançá-los numa espiral que perpetua a violência que testemunham e experienciam. No entanto, existem aqueles que sobrevivem - raros - física e espiritualmente mantendo a sua liberdade intacta e, como "Saroo" bem prova ao espectador, apesar de lançado num turbilhão de aventuras, sensações e sentimentos, conseguiu desde jovem idade sobreviver às diversas provações com que deparou e, apesar de muitos momentos em que a sua perda - física e psicológica também ela - se marcou e acentuou, é testemunhada a superação da mesma e a confirmação de que foi - é - um espírito livre e que contornou esses mesmo obstáculos.
Finalmente, os dois aspectos que considero mais relevantes - pelo menos a título pessoal - são as fronteiras que se ultrapassam e que são tão bem filmadas e expostas em Lion. De antemão o espectador já sabe que está perante uma história verídica e que, dramatização à parte, o espectador aproxima-se de um relato de vida transformador e que expõe a intimidade de um jovem - e da sua família - mas, no entanto, é esta exposição que nos faz perceber e sentir - elemento nem sempre conseguido numa obra cinematográfica - como uma família que não sendo de sangue pode ser e constituir-se aquela que, na prática, se transforma na nossa (sua)... aqueles que incutem valores morais, sociais e até mesmo culturais aproximando-nos de uma realidade que é, na teoria, totalmente distante da nossa "de raíz". A forma como é retratada a relação entre as pessoas - jamais personagens - interpretadas por Dev Patel e Nicole Kidman, e a relação maternal desta para com o primeiro, é desarmante. Desde os instantes iniciais em que ambos se conhecem sem esquecer a idade adulta em que uma mãe sofre com o desgosto, desilusão e ausência de um filho de coração que criou e de quem cuidou como seu, culmina com uma re-aproximação em adulto (ele) que lhe confirma que o destino de ambos estava interligado desde tempos em que o próprio nem sequer existia e que era - para ela - a certeza de uma missão de vida que apenas e só "Sue" compreendia.
Finalmente, mas não menos importante, é a representação (ou recriação) cinematográfica do poder da memória, ou seja, os fragmentos da mesma que se diluem com o passar dos anos e com as experiências que cada um atravessa individualmente mas que, a seu tempo e graças a um instante que ficou gravado como se a mente de uma pedra se tratasse, faz despoletar todo um conjunto de momentos vividos e experimentados que (o) aproximam a uma realidade até então involuntariamente ignorada. Este registo, que num crescendo vai tomando conta de todas as decisões e até mesmo da própria percepção é, através de Dev Patel, representado como um período que o leva a "habitar" num conjunto de incertezas e dúvidas sobre o seu "eu" questionando, inclusive, todo o seu percurso que o conseguiu levar ao momento bem favorável em que se encontra. Mas, numa espiral de acontecimentos que parecem alinhados para aquele exacto momento em que as suas memórias ressurgem, o "Saroo" de Patel é um homem que tanto pode viver atormentado com a dúvida como também com a confirmação dos factos que tanto procura. A memória, não só regeneradora como sempre presente, é aqui o elemento fundamental e indispensável de uma viagem que - na realidade - estava destinada a acontecer.
Mas Lion é, enquanto filme e obra cinematográfica, bem mais do que uma história, mais do que o registo de uma vida - só por si já dignificante - mas também uma explosão de pequenos grandes elementos que lhe dão uma cor e uma emotividade capazes de fazer render o espectador. Se este espera uma história terna, de alguma aventura é um facto, e também de (auto)descoberta, não será menos justo dizer que para todos estes elementos funcionarem existem outros que funcionam para os exponenciar como, por exemplo, a sua magnífica música original da autoria de Volker Bertelmann e Dustin O'Halloran - uma das mais criações maiores deste último ano - que fazem vibrar todas as emoções e sentimentos que o espectador vive durante estas quase duas horas cinematográficas. Inteligentemente colocadas em todos os momentos chave de Lion, todas as notas e acordes são um registo emotivo sem limites que prendem o espectador ao ecrã querendo devorar todos os elementos da viagem emocional de um jovem "Saroo" e daqueles que com ele a partilham. Mas esta longa-metragem é ainda um filme de actores... e entre estes seria impossível não referir a evidente Nicole Kidman com poucos mas fundamentais momentos que a transformam na mãe - não queria chamar-lhe "verdadeira" - de "Saroo" que cedo compreende o momento em que ele se encontra sem, no entanto, conhecer a missão que o levou a tal "momento". Com uma interpretação que irá, muito provavelmente, confirmar-lhe a quarta nomeação aos Oscars - e esperemos que o conquiste - Kidman é o coração de um filme que apela (por todos os seus poros) ao sentimento. Já Dev Patel, num registo que ultrapassa aquele confirmado com Slumdog Millionaire, é a alma desta história. Mas apenas a parte de uma alma que é completada com Sunny Pawar, o jovem actor que ilumina o ecrã com a sua ternura, vivacidade e força que nos aproxima dele com a mesma intensidade que ele demonstra durante a sua viagem de quilómetros de distância. A história que não sendo dele, é transformada como um momento do seu ser e a bravura com que se entrega a esta aventura fazem dele o elemento que se destaca por entre toda a perfeição e revelação (sua) retirada pela mestria de um realizador como Garth Davis que desde a série Top of the Lake (2013) já deixava notar todo o seu potencial enquanto criador de experiências que o espectador não iria esquecer.
Passando o lugar comum - porque detesto frases feitas aplicadas a um filme - mas Lion é, sem margens para dúvida, uma experiência cinematográfica, forte na capacidade com que retira do espectador uma emoção pouco gratuita ao mesmo tempo que consegue representar o retrato de um povo, numa época não muito distante, um ciclo (ou forma) de vida que tantas vezes desconhecemos e abrilhantado com magníficos desempenhos de um conjunto de actores - profissionais e não - capazes de fazer passar essas mensagens... a da família de coração bem como o poder de uma memória que regista os elementos fundamentais de toda uma vida.
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