quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Beatriz (2015)

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Beatriz de Alberto Graça é uma longa-metragem luso-brasileira que esteve no início deste ano em competição no FESTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa que decorreu no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Em Lisboa, Marcelo (Sergio Guizé) trabalha para uma revista para a qual escreve pequenos contos enquanto Beatriz (Marjorie Estiano), a sua mulher, o apoia numa vida sonhada para os dois. Quando Marcelo recebe uma proposta para dar corpo ao romance que tinha planeado, a vida do casal sofre graves transformações que colocarão à prova o seu amor.
Poderá esta relação sobreviver a um conjunto de provações que têm como fim último um conjunto de momentos irreparáveis?
Num argumento da autoria de Alberto Graça, José Carvalho, José Pedro dos Santos, Ricardo Bravo com a participação de Marcos Bernstein, o espectador encontra uma Lisboa desencantada onde dois sobreviventes de uma emigração nem sempre desejada resistem numa cidade onde os seus objectivos parecem já não ser correspondidos. A relação do casal sobrevive agora graças a pequenos jogos elaborados pela cidade pela qual são lançadas e esquecidas pistas para redescobrir ou reacender uma chama semi-extinta. Nem sempre favoráveis a estes jogos, tanto "Marcelo" como "Beatriz" são agora o fruto de um clima de aceitação e conformidade que nem sempre os completa ou tão pouco os deixa feliz. No final destas fantasias erótico-sexuais, ambos parecem satisfazer momentaneamente o seu propósito remetendo-se, de seguida, à constante existência fantasma que parecem levar pelos seus empregos pagos mas pouco satisfatórios e por uma vida enquanto casal dependente... mas afectivamente distante.
Mas, para lá da pouca satisfação sentimental e afectiva que parecem retirar da sua relação, esta começa a ser tóxica na medida em que tanto "Marcelo" como "Beatriz" começam a trabalhar em comum para a finalização de um livro - o dele - sendo ela uma fonte de inspiração (para ele) através de um experimentação sexual que a mesma enceta como uma vivência tida como normal. "Beatriz" é então uma musa (forçada) para "Marcelo" que, por sua vez, se torna cada vez mais violento com a sua mulher por esta experimentar algo que a ele o inspira. Num ciclo de vício - ele necessita, ela executa, ele revolta-se, ele necessita (...) - um livro finaliza-se, uma peça de teatro é encenada e uma relação definha à medida que tudo o demais parece estar a concluir-se.
Mas se a inspiração de "Marcelo" se deve a uma degradação física e psicológica de "Beatriz" que se deixa levar por um jugo de sexo anónimo (nos mais variados locais sempre com exposição pública), decadência e até mesmo violência, é também o facto de o espectador ser levado a um submundo marginal de uma Lisboa nocturna que se torna lentamente como um dos pontos de interesse desta longa-metragem na medida em que se observa um outro lado da capital que não só se (des)conhece como é também pouco explorada no cinema. Aqui Lisboa apresenta-se com duas facetas... temos um lugar diurno invadido por turistas e pontos de interesse da cidade - a referência ao eléctrico 28 é disto o melhor exemplo - luminosa e calorosa e, por outro lado, um submundo de sexo, prostituição, voyeurismo e violência que se esconde nas sombras de uma noite muito pouco convidativa. No fundo estes dois momentos distantes da cidade acabam por ser reflectidos nos comportamentos deste casal cada vez menos afectivo... se começamos com uma perspectiva radiante e plena de promessas, a mesma termina com a real constatação de que ambos entram em domínios e caminhos obscuros que se prendem mais com uma dependência emocional que manifestam do que propriamente com o amor ou a promessa de uma vida e construção de uma família que cada vez menos é uma realidade.
A dar corpo a estas personagens temos, por um lado, Sergio Guizé que com o seu "Marcelo" revela uma alma violenta, mentalmente perturbado - e amaldiçoado de certa forma - pelo fantasma de uma obra que o consome pelas práticas que sente necessárias ter de efectuar para a terminar levando com ele, numa espiral de decadência onde o próprio se insere, a sua mulher que para lá de amor ou um sentimento limpo sente por ele uma estranha obsessão que a condiciona no pensamento e na vontade de expressar o seu pensamento livre. Ao lado de Guizé encontramos Marjorie Estiano como "Beatriz", que poderia ser facilmente remetida para uma personagem secundária mas que, por sua vez, se assume como uma intensa protagonista que domina não só a trama como a principal transformação psicológica enquanto uma mulher recatada e segura de um sentimento num ser algo frígido e apática - ao sentimento - que assume um pensamento mecânico sobre a vida e sobre os homens - os muitos que encontra - usando-os como instrumentos de um prazer não sentido que se camufla com uma inexplicada necessidade de agradar um amor que já não o é. É esta obsessão - que domina toda esta longa-metragem - que silenciosamente ocupa a  mente dos dois protagonistas levando-os a uma espiral de decadência e desilusão facilmente comparável a um Leaving Las Vegas, de Mike Figgis onde para lá de um amor sentido resiste uma decadência anunciada e confirmada.
Com interpretações secundárias - mas não menos importantes - encontramos ainda os portugueses Luís Lucas como "Alfredo", o dedicado mentor de "Marcelo", Margarida Marinho como "Laura" a sua dedicada esposa e Beatriz Batarda como "Débora", a patroa de "Beatriz" e aquela que, de certa forma, a liberta de uma poderosa e nefasta influência de um marido descontrolado na sua própria sede - e necessidade - de uma decadência alheia que a consome muito rapidamente.
Com uma interessante e contrastante - na medida em que expõe dois "mundos" diferentes de uma cidade e das personagens que a habitam - direcção de fotografia de Rodrigo Monte, Beatriz é uma intensa longa-metragem sobre uma dependência emocional e física de uma personagem. Dependência essa que corrói, consome, aprisiona e condiciona todos os movimentos e acções de uma mulher que em tempos apenas havia desejado amar... e poder ser amada.
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7 / 10
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