terça-feira, 17 de abril de 2012

Ruggine (2011)

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Ferrugem de Daniele Gaglianone foi a segunda longa-metragem que vi no âmbito da Festa do Cinema Italiano, e possivelmente o filme-choque que a mostra deste ano tem para exibir.
Baseado na história de Stefano Massaron, este filme conta-nos a história de um pequeno grupo de crianças de um bairro social que costumam passar o seu tempo e as suas brincadeiras junto de um complexo abandonado semelhante às torres de um castelo no meio de muita ferrugem (que dá o título ao filme).
Os acontecimentos que mostram uma população jovem, simples e sem grandes recursos onde o dia-a-dia das crianças preenche quase na totalidade a agitação a que o bairro assiste, são ensombrados com a chegada de misterioso Dr. Boldrini (Filippo Timi). Se inicialmente parece estar pronto a resolver todos os problemas de tão carenciada população, rapidamente o Dr. Boldrini mostra uma faceta que todos desconheciam.
Os acontecimentos daqueles meses irão para sempre reflectir-se nas vidas adultas de Sandro (Stefano Accorsi), de Cinzia (Valeria Solarino) e de Carmine (Valerio Mastandrea), que não só mostrarão ser pessoas isoladas dos relacionamentos como também profundamente afectados com as graves consequências que dali surgiram.
Este filme que me era desconhecido até fazer parte da programação da 5ª Festa do Cinema Italiano tem um conjunto muito grande de factores positivos que o destacam não só como um dos melhores desta festa como também um dos melhores a ter estreado este ano em Portugal.
O conjunto de interpretações dos quatros actores já referidos é assombroso. Todos eles, sem qualquer excepção, mostram personagens marcadas, e marcantes, nas suas personalidades. Filippo Timi mostra-se com a presença regular e definitiva como o vilão disfarçado de quem ninguém inicialmente suspeita. Aqui chegado ao bairro como o médico, figura que todos respeitam pela sua profissão bem como pela sua palavra, mas que no seu íntimo refugiado de tudo e todos mostra realmente os seus verdadeiros demónios ao ponto de ser uma verdadeiramente assombrosa personificação do mal. Não basta meter medo pelos seus comportamentos pouco ortodoxos perante os outros, como ainda lhes alia o facto de quando sózinho mostrar o quão longe vai toda a sua paranóia, e maldade, capaz de dominar pelo medo e pela força as tão vulneráveis crianças. Este filme consegue revelar, sem nada mostrar em concreto, o quão perigoso pode ser um "Homem" em quem todos confiam os seus filhos e que deles abusa (e mata) sem que ninguém sequer desconfie.
É este homem, esta personificação do mal, que marca para sempre as vidas de Sandro, Cinzia e Carmine. De tal forma que já em adultos continuarão a mostrar as graves sequelas de que são vítimas. Vidas isoladas, marginais, solitárias e com os seus próprios demónios criados durante aqueles meses da sua juventude.
Sandro (Accorsi), é um pai que tem uma incómoda relação com o seu filho. Incómoda por revelar ao mesmo tempo tantas distâncias e proximidades que são por vezes estranhas. Um homem que não se sente capaz de proteger o seu filho dos "demónios que espreitam" em todos os locais.
Cinzia (num brilhante registo de Solarino), uma professora de artes solitária e sem qualquer contacto ou sensibilidade que a possa comprometer com as outras pessoas, mas com a suficiente para perceber onde se encontram os comportamentos desviantes dos demais para no exacto momento os confrontar. Brilhantemente assustador a reunião de professores em que participa (dos poucos momentos em que nos brinda com a sua presença no ecrã), mas que conseguem ser dos mais determinantes para que qualquer um de nós, enquanto espectador e humanos participantes activos em socidade, consigamos perceber onde está "algo" que merece ser visto com olhos de quem quer ver.
Finalmente de todos aquele que é talvez o mais atormentado. Carmine (um Mastandrea que aqui poderia receber todo e mais algum prémio de interpretação), é um homem que em rapaz assistiu ao desfecho do Dr. Boldrini. Ele juntamente com Sandro e Cinzia sabe o que realmente se passou naqueles dias. É ele que viu a sua irmã momentaneamente desaparecer às mãos de Boldrini, e é ele que agora em adulto sente uma ruptura total para com o seu próprio bem-estar. Afinal foi ele que anos antes havia posto um termo àquele monstro que, uma vez desaparecido, o continuou a ensombrar. Mastandrea, que não precisa de nos dar mais nenhuma prova da sua magnitude enquanto actor, aqui ultrapassa todos os registos interpretativos com que já nos havia surpreendido. Se os filmes viverem de interpretações, de boas interpretações claro, Timi e Mastandrea cumprem mais do que aquilo que deles se espera. E Solarino consegue nos seus breves momentos de ecrã ser aquela que consegue desarmar o mais indiferente (se fôr sequer possível) dos espectadores.
Daniele Gaglianone, que não só realiza como assina o argumento em colaboração com Giaime Alonge e Alessandro Scippa, não só consegue recriar um ambiente de bairro onde as crianças brincam somente a pensar naquilo que deve preocupar uma criança (nada), como ao mesmo tempo consegue recriar neste mesmo espaço um local de onde todos acabam por ter medo de sair das suas casas. Sente-se em diversos momentos que está literalmente um predador à espera da sua próxima presa. A tensão está presente em todos os momentos do filme, tanto na juventude como na idade adulta dos três principais intervenientes. Quer nas suas jovens vidas quer no decorrer da sua vida adulta. Eles estão para sempre marcados nos rostos e nos comportamentos deste trio.
Esta tensão em muito é também sentida graças a uma montagem que nos transporta quer ao passado quer à actualidade, através dos segmentos onde nos está a ser relatado um determinado acontecimento mas que não é finalizado levando-nos ao seu oposto. Quando algo parece estar prestes a ser explicado do ponto de vista das crianças, rapidamente as temos já em adultos. Quando parece que vamos finalmente ver o que aconteceu a uma ou outra criança pelos olhos das crianças, rapidamente somos transportados para os olhos do vilão. Em vez de sentirmos um crescendo no final de todo o filme, aquilo que vamos tendo é esse crescendo multiplicado pelos vários flashbacks que temos sempre vistos pelos olhos quer de um quer de outro dos intervenientes, estando em todo o "fantasma" do Dr. Boldrini.
Tanto a banda-sonora de Evandro Fornasier, Walter Magri e Massimo Miride que mantém um clima de suspense e tensão agudizados pelos filmagens bem próximas das expressões destes actores que mostram todo o seu sentimento de presas, que também eles o foram e são de alguma forma, fazem com que nós enquanto espectadores sintamos estar quase sempre num ambiente prestes a explodir... sem que nunca aconteça. No entanto a sensação incómoda está sempre, sem excepção, presente. Aconteça ou não nós sabemos que algo está mal... A todo o instante.
Talvez não apreciado pela sua temática sensível e infelizmente presente na realidade que acompanhamos através de tantos noticiários, como é concretamente o caso da pedófilia, este filme consegue ser um retrato de que ela pode acontecer no mais insuspeito dos meios. Com as pessoas mais insuspeitas e que é normalmente um crime silencioso. É feito sem que alguém se aperceba... e como nos retratam os momentos de Cinzia enquanto professora, sem que muitos o queiram perceber.
Bruto, tão ou mais corrosivo que a própria ferrugem que dá título ao filme, é incomodativo mas brilhante. Tanto na sua execução como nas suas interpretações magistrais e um dos melhores filmes dos últimos anos que esse já por si excelente cinema italiano, fez estrear.
Uma palavra não chega por isso utilizarei duas... simplesmente brilhante.
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10 / 10
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