sexta-feira, 1 de abril de 2011

Quinze Pontos na Alma (2011)

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Quinze Pontos na Alma de Vicente Alves do Ó foi, para mim, um dos filmes-acontecimento do ano por motivos que passo agora a explicar.
No já longínquo ano de 2009 quando vi uma reportagem televisiva de um filme do qual até então não tinha conhecimento, deparei com um Sr. Vicente Alves do Ó, do qual já tinha visto filmes cujos argumentos assinou, tais como Facas e Anjos, Os Imortais, A Filha e Kiss Me, que falava em estar farto de filmes de pobrezinhos. Na altura pareceu-me um comentário despropositado mas, como de cinema português se tratava, lá fiz cópia dessa entrevista para o meu então recente blog e dei o assunto por terminado.
Dias depois, e através de uma troca de mensagens entre leitores, eis que me aparece o realizador do filme a dar ar de sua graça a explicar o porquê de tais comentários. Dono de uma elegância que agora lhe reconheço e que educamente defendeu as suas palavras.
Graças a estas, e outras, novas tecnologias, e com o tempo claro está, tenho vindo a tomar conhecimento do longo processo que este seu filme demorou a estrear e, de algumas das suas ideias para futuros projectos que, adianto desde já, estar entusiasmadamente à espera.
A ida à ante-estreia do Quinze Pontos na Alma foi igualmente uma agradável surpresa. Não escondo que entrar pela primeira vez no Cinema São Jorge em Lisboa, onde aliás se passa uma das sequências do filme, foi um acontecimento digno de se dizer "fui ao cinema". Dá gosto e verdadeiro sentido à experiência de ver um filme.
Passando então ao filme em si, e tendo como base as anteriores experiências de filmes com argumento do Vicente, as minhas expectativas eram de facto grandes. Já tendo também algum feedback do teaser, do trailer e dos actores que o compõem, maior ainda era a minha ansiedade para saber o que ele nos reservava aqui com esta sua primeira longa-metragem enquanto realizador.
O elenco, irrepreensível e repleto de actores que admiro por variados motivos, muito prometia. Rita Loureiro, essa brilhante actriz possuídora de um carisma incrivelmente sedutor como actriz principal, rodeada de um Ivo Canelas que todos nós amamos desde que o vivo n'O Fura Vidas e uma Dalila Carmo que está no coração de todos aqueles que a viram no Diário de Maria eram acompanhados por Carmen Santos, Maya Booth, Ana Moreira, João Reis, Marcello Urgeghe e Filipe Vargas. Um grupo bem sólido e consistente que tudo tem para que aquilo a que iriamos assistir funcionasse bastante bem.
E funcionou... Temos o retrato de um grupo de pessoas, onde se destaca Simone (Loureiro), uma mulher que se percebe independente e com um casamento feliz mas que, um dia, encontra um homem numa ponte prestes a suicidar-se. Ao sair do seu carro dão um beijo e, para seu espanto, quando abre os olhos ele desapareceu.
A vida de Simone a partir desse dia, iria mudar para sempre. As suas relações profissionais iriam ficar inconstantes e as suas relações pessoais mais ainda. Simone afasta-se de todos aqueles de quem era próxima... Fica fria e distante... Amigos e marido passam a ocupar um lugar quase inexistente na sua vida para dar lugar a uma outra onde se identifica agora com um homem que viu uma vez e desapareceu.
Conhece a mãe, Raquel Abecasssis (Santos) e o irmão, David (Urgeghe), do homem que tanto a marcara apesar dos breves instantes em que se cruzaram, e é com eles que, de certa forma, estabelece alguns laços apenas com o propósito de saber quem ele era.
Simone transforma-se... modifica-se para uma outra mulher agora distante e desinteressada das rotinas habituais da sua vida. O seu casamento deixa de ter o sentido que lhe dava anteriormente e as conversas banais dos seus amigos passam a ser aborrecidas e sem conteúdo. Até mesmo os problemas que os seus amigos de longa data têm parecem-lhe apenas longos lamentos desprovidos de significado ou conteúdo.
Rita Loureiro tem um forte e dinâmico desempenho neste filme onde muitos dos seus pensamentos passam também pelas suas expressões vazias e distantes. Ela assume-se como um ser independente de tudo e de todos. Desinteressada das banalidades que a rodeiam. Dos problemas dos outros. De uma vida que se presume ter sido seguida de regras e de ideias pré-estabelecidos onde o sucesso profissional e pessoal caminhavam lado a lado. Esta personagem assenta-lhe como uma luva, passo a expressão, e temos assim o retrato de uma mulher forte e farta das banalidades e das rotinas que lhe preenchiam os seus dias.
Gostei do momento em que uma Simone desprendida e desinteressada para com Leonor (Dalila Carmo) e os seus problemas, a olha não com desprezo mas com pena e lhe revela estar simplesmente farta de todos os problemas que esta última decide nunca resolver para não abanar a sua vida e assim não se afirmar enquanto pessoa preferindo viver uma relação instável repleta de infidelidades mas que é, para Leonor, o único garante de uma estabilidade inexistente.
Carmen Santos foi a outra gande surpresa deste filme. Não que duvidasse das qualidades e capacidades interpretativas desta grande actriz mas, todo o seu desempenho e em particular o último diálogo entre ela e a personagem de Rita Loureiro é um franco e bem dado murro. Diz ela "Aquilo que não sei é se alguma vez amei tanto os meus filhos como os meus livros". A amargura que transparece através destas palavras é simplesmente cortante e foi aquele momento em que me senti realmente "encostado contra a parede". É de e com estes momentos que sinto realmente que o filme "tocou". E "tocou".
A nível de interpretação a única que me deixou assim com mais reservas foi a de Marcello Urgeghe. Momentos houve ao longo do filme em que senti que a sua interpretação não parecia tão natural ou espontânea mas sim com leves "traços" de que quase lia o que tinha de dizer em vez de o representar. Digamos que me soou a mais teatral.
A banda-sonora de Pedro Janela é igualmente muito boa. Em muitos filmes portugueses a que já assisti, poucos são aqueles que se podem gabar de dizer ter uma banda-sonora própria limitando-se antes, em muitos casos, a um conjunto de acordes já conhecidos ou descontextualizados. Aqui senti que a música e as imagens a que assistia estavam de facto ligadas e com sentido de forma a darem uma coerência ainda maior ao filme. Os seus primeiros acordes, ao ritmo de passagem do igualmente brilhante genérico inicial abrem caminho para aquilo que viria a ser um muito bom filme, não o limito a português... simplesmente um BOM filme.
Gostei igualmente dos vários "postais" que o filme nos apresenta. As imagens de modernos exemplares de arquitectura que mostram uma cidade moderna e desenvolvida, ao contrário dos tradicionais cenários de época ou mais degradados. Uma Ponte Vasco da Gama e o Tejo naquele que foi, para mim, o "postal" mais bonito do filme.
Marcou-me pela curiosidade que lhe identifiquei, os pequenos "postais" com os quais identifico aquilo que vou conhecendo do Vicente. Um vidro partido por Simone que é imediatamente tapado por um quadro onde brilha uma esplendorosa Marilyn Monroe. Os inúmeros cartazes de filmes de outros tempos que vemos no loft onde Simone "fixou" residência. Isto fez, acima de tudo o resto, identificar imediatamente o filme como uma obra do Vicente (ele que me perdoe a presunção deste reparo).
Um último reparo neste comentário que já vai bem longo é para o muito bom trabalho de guarda roupa de Paulo Gomes que, mais uma vez contrariando a tendência que muitos filmes nacionais têm, espelha um grupo de pessoas cuidadas nada "pobrezinhas" (esta é uma piada pessoal).
É também isto que podemos constatar ao longo do filme. Um outro meio.. um outro Portugal já distante da eterna humildade e pequenez onde se remedeia tudo e todos com a simplicidade. Um Portugal já com outros hábitos e outros costumes onde também existe luxo e a possibilidade de ter tudo. Tudo de material. Como constatamos em muitas das personagens existe também a inexistência de afectos. A inexistência dos de Raquel para com os seus filhos David e Guilherme... de Mário para como Leonor. Tal como constatamos no trailer... "ter tudo por vezes não chega..."
Uma história de perda, de amor, de angústia e de amargura... mas com a ideia de que é possível mudar... simplesmente mudar. História esta que não devemos perder e que no próxima ano dará certamente a nomeação a Rita Loureiro aos Globos de Ouro e a Vicente Alves do Ó para Filme. Até lá que não se perca a oportunidade de, a partir de 7 de Abril, o vermos no cinema.
Para os interessados (que espero sejam MUITOS) neste filme, deixo também aqui o site do filme para que possam tomar mais algum conhecimento sobre o que os espera na sala de cinema bem como o trailer para que possam já ficar com algumas interessantes imagens.
Parabéns Vicente... que este traga muito sucesso e que o próximo (que aguardo ansiosamente) chegue rapidamente.
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"Mário: O silêncio é muito mais ruidoso do que uma boa gargalhada."
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8 / 10
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